Notícia
Introdução
O programa do XXIII Governo Constitucional, recentemente anunciado, vai condicionar o desenvolvimento do País nos próximos quatro anos. Fizemos a sua análise detalhada, na perspetiva dos serviços de águas. Que orientações nos traz ele para o setor?
A estrutura do programa
O programa apresentado está estruturado numa primeira parte sobre boa governação e em quatro grandes desafios estratégicos. O primeiro é o das alterações climáticas transição climática, o segundo da demografia, o terceiro das desigualdades e o quarto da sociedade digital, da criatividade e da inovação.
As referências mais diretas aos serviços de águas surgem no desafio das alterações climáticas transição climática, incluídas principalmente na economia circular, mas também na transição energética e na valorização do território. Aparecem ainda referências mais transversais, aplicáveis aos serviços de águas, no desafio estratégico da sociedade digital, da criatividade e da inovação, incluídas essencialmente na economia 4.0 e na defesa dos consumidores.
A estratégia nacional para os serviços de águas
Importa prioritariamente avaliar o programa em termos de estratégia nacional para os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais.
Verifica-se que ele pretende prosseguir com o apoio à melhoria de eficácia e eficiência na gestão do ciclo urbano da água, preconizado no Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030, atualmente em consulta pública, designadamente nos mecanismos de equilíbrio económico e financeiro dos sistemas municipais, na manutenção dos sistemas e na redução das perdas de água, inovando nos sistemas de monitorização (smart grids), com programas específicos de alargamento do saneamento de águas residuais, de ligação à rede e novas tecnologias de proximidade e flexibilidade, atuando sobre a gestão de águas pluviais, continuando a aposta na água residual tratada, numa gestão eficiente de lamas, e nas medidas de neutralidade energética. Preconiza substituir uma economia linear, que extrai, transforma, vende e deita fora, por uma economia circular, pois a primeira conduz a uma pesada fatura climática, para além de intensificar os riscos derivados da escassez de água. Considera que, com o aumento da procura, gerir eficazmente estes recursos é imprescindível para uma economia resiliente, sustentável e competitiva.
Estas orientações são importantes, reforçando a relevância do PENSAARP 2030 para o setor, na sua globalidade, pois ele cobre no essencial todos estes aspetos.
Os serviços de água e os recursos hídricos
Importa também avaliar o programa em termos de recursos hídricos, face à sua importância e ao forte impacte nos serviços de águas, quer enquanto origem quer como destino final do ciclo urbano da água.
Verifica-se que o programa pretende dar continuidade aos planos de gestão de regiões hidrográficas, concluir a elaboração dos planos de gestão de riscos de inundação e dos planos de gestão de seca, e rever os planos de ordenamento das albufeiras de águas públicas, tendo em conta os resultados do recente estudo de avaliação de disponibilidades hídricas atuais e futuras e aplicação do índice de escassez. Pretende dar continuidade à execução da estratégia nacional de reabilitação de rios e ribeiras, numa abordagem à valorização da rede hidrográfica nacional, com primazia aos métodos de engenharia natural, e reforçando a monitorização, melhorando a qualidade das massas de água e a capacidade de resistir a fenómenos de cheias, revendo as licenças de captação e de descarga dos grandes operadores económicos, reforçando os meios de fiscalização e de inspeção das captações e descargas ilegais e continuando a promover soluções integradas de valorização e tratamento de efluentes agropecuários e agroindustriais.
Estas orientações são convergentes com o objetivo A3 sobre qualidade das águas para abastecimento e rejeitadas, bem como as medidas ambientais referidas no PENSAARP 2030, a serem incluídas em sede do plano nacional da água e dos planos de gestão de bacia hidrográfica.
Os serviços de água e a resiliência
Face à sua importância para os serviços de águas, importa avaliar o programa em termos de medidas de reforço da resiliência face a fenómenos naturais e provocados.
O programa relembra que o território nacional, pela sua posição geográfica, é particularmente vulnerável aos efeitos das alterações climáticas. Ondas de calor e secas prolongadas colocam pressão sobre o recurso água e períodos de precipitação intensa e concentrada no tempo podem conduzir a situações de cheias. Sendo inevitável o aumento da frequência e da intensidade destes eventos, o programa preconiza reduzir estas vulnerabilidades e aumentar a resiliência, não só através de intervenções no território, mas também aumentando o conhecimento e a informação indispensáveis à aplicação das medidas necessárias para a proteção das comunidades, nomeadamente no que diz respeito à segurança do abastecimento de água. Preconiza otimizar a capacidade de armazenamento, designadamente através de interligações entre sistemas, como forma de garantir maior resiliência aos sistemas de abastecimento. São exemplo os planos regionais de eficiência hídrica do Alentejo e do Algarve.
Estas orientações são convergentes com a medida A4 sobre segurança, resiliência e ação climática, que integra o PENSAARP 2030.
Os serviços de água e a utilização das águas residuais
Importa avaliar o programa em termos de utilização das águas residuais, face à sua atualidade no setor enquanto nova origem de água a explorar.
O programa pretende promover a reutilização de águas residuais tratadas para fins compatíveis, diminuindo a pressão sobre as origens de água superficiais e subterrâneas. Pretende também rever o sistema de cálculo do tarifário da água para rega de modo a incentivar o consumo eficiente, nomeadamente com o recurso a água reciclada tratada, por exemplo nas componentes do regadio do plano regional de eficiência hídrica do Algarve e do aproveitamento hidráulico de fins múltiplos do Crato.
Estas orientações são convergentes com a medida C3 sobre utilização e recuperação de recursos, que integra o PENSAARP 2030.
Os serviços de água e a transição energética
Face ao peso que a energia tem nos serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais, importa avaliar o programa em termos de transição energética.
O programa pretende acelerar a concretização do Plano Nacional Energia e Clima 2030 e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Pretende também implementar uma estratégia nacional para o biometano, produzido nomeadamente a partir de águas residuais ou lamas de estações de tratamento. Pretende ainda prosseguir com a aposta na eficiência de recursos, na descarbonização e nas energias renováveis pelo Estado, com metas na redução dos consumos de energia primária, do consumo de água e de outros materiais, bem como renovação energética e hídrica dos edifícios das entidades da administração pública direta e indireta, incluindo serviços centrais e periféricos.
Estas orientações são convergentes com a medida B5 sobre eficiência energética e descarbonização, que integra o PENSAARP 2030.
Os serviços de águas, a Economia 4.0 e as cidades inteligentes
Importa avaliar o programa em termos de Economia 4.0, face ao impacte que pode ter para os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais, e em termos das cidades inteligentes, de que os serviços de águas são parte integrante.
O programa pretende promover a transformação digital do tecido empresarial. Pretende apoiar as start-ups e atrair talento, concretizando também um programa de residência digital, para aquisição e retenção de talentos estrangeiros. Pretende implementar a inovação e a modernização do estado e da administração pública. Aposta na formação de territórios inteligentes e na criação de uma rede de cidades inteligentes, promovendo o uso e proliferação de tecnologias relacionadas com a Internet das Coisas, contribuindo para uma tomada de decisão mais fundamentada e inteligente, incentivando a gestão inteligente das redes de águas e o recurso a tecnologias que salvaguardem uma maior eficiência energética.
Estas orientações são convergentes com a medida B2 sobre organização, modernização e digitalização das entidades gestoras, a medida C5 sobre gestão de informação, conhecimento e inovação e a medida D1 sobre valorização empresarial e económica, que integram o PENSAARP 2030.
Os serviços de águas e a proteção dos consumidores
A questão da proteção dos consumidores está sempre associada aos serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais, enquanto serviços públicos essenciais.
O programa pretende criar condições para o alargamento e a modernização da rede de centros de arbitragem de consumo, designadamente no que concerne à sua presença territorial e através da criação de uma plataforma digital para resolução alternativa de litígios. Pretende também permitir que as entidades reguladoras determinem, mediante injunção, a restauração da situação anterior à prática da infração.
Estas orientações são convergentes com a medida D3 sobre valorização societal, que integra o PENSAARP 2030.
Os serviços de águas e a segurança
Importa avaliar o programa em termos de segurança, face à sua importância para os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais, considerados serviços críticos essenciais ao funcionamento da sociedade.
O programa pretende reforçar a cibersegurança das organizações, nas vertentes das infraestruturas digitais e operacionais, bem como o desenvolvimento de competências tanto gerais como especializadas dos recursos humanos, concretizando os investimentos previstos no PRR. O programa pretende robustecer a segurança interna e proporcionar aos cidadãos níveis mais elevados de segurança. Prevê implementar o sistema de planeamento civil de emergência em diversos setores, nomeadamente dos serviços de águas, integrando a adoção de medidas preventivas e de coordenação de resposta em situações de crise, com vista a salvaguardar o funcionamento dos serviços públicos e das infraestruturas críticas.
Estas orientações são convergentes com a medida A4 sobre segurança, resiliência e ação climática, que integra o PENSAARP 2030.
Os serviços de águas e os recursos humanos
Importa naturalmente avaliar o programa em termos de recursos humanos, face à sua importância para os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais.
O programa pretende valorizar, capacitar e rejuvenescer a administração pública. Prevê rever a duração das comissões de serviços de dirigentes intermédios, com vista a imprimir maior dinamismo nos serviços, alargando ainda a sua base de recrutamento para além da Administração Pública, ao setor empresarial do Estado e às autoridades reguladoras. Pretende estimular o trabalho à distância, potenciando o recurso ao teletrabalho como meio de flexibilidade da prestação de trabalho e como possibilidade de maximizar o uso das tecnologias no âmbito de outras formas contratuais, estimulando o aparecimento de funções em regime misto de trabalho presencial e teletrabalho, conferindo vantagens para esta forma de contratação para funções que possam ser prestadas fora dos grandes centros populacionais, estabelecendo incentivos para a deslocalização de postos de trabalho para zonas do interior ou fora dos grandes centros urbanos, criando centros de apoio ou de teletrabalho no interior do país, dotando os organismos e serviços públicos de capacidade para acolhimento e implementação desta opção de trabalho, experimentando, em serviços-piloto da administração pública, o trabalho remoto a tempo parcial e fixando objetivos quantificados para a contratação em regime de teletrabalho na administração pública.
Estas orientações são parcialmente convergentes com a medida C4 sobre capital humano, que integra o projeto de PENSAARP 2030, pese embora muito centradas na administração pública.
Os serviços de água e os riscos de corrupção
Importa finalmente avaliar o programa em termos de riscos de corrupção, face à sua importância transversal para os setores de atividade, nomeadamente os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais e pluviais.
O programa pretende prevenir a corrupção e a fraude, incluindo naturalmente este setor, responsabilizando a entidade reguladora, as associações públicas profissionais e outras entidades competentes pela imposição de medidas adicionais, e promovendo boas práticas nos serviços públicos essenciais.
Estas orientações são convergentes com a medida D4 sobre transparência, responsabilização e ética, que integra o PENSAARP 2030.
Em síntese
O programa do XXIII Governo Constitucional traz-nos orientações para o setor que no essencial coincidem com as previstas no projeto de PENSAARP 2030, embora se notem algumas ausências, como as relativas ao papel e à importância das entidades reguladoras.
Efetivamente, a visão do plano foi materializada em quatro objetivos estratégicos globais, que pretendem atingir serviços eficazes, eficientes, sustentáveis e com mais valor acrescentado para a sociedade. Esses objetivos globais desdobram-se em 20 objetivos específicos. A eficácia dos serviços passa por atingir acessibilidade física, continuidade e fiabilidade dos serviços, qualidade das águas distribuídas e rejeitadas, segurança, resiliência e ação climática, e ainda equidade e acessibilidade económica dos utilizadores. A eficiência dos serviços passa por atingir melhor governo e estruturação do setor, organização, modernização e digitalização das entidades gestoras, gestão e alocação eficiente de recursos financeiros, eficiência hídrica, eficiência energética e descarbonização. A sustentabilidade dos serviços passa por atingir sustentabilidade económica, financeira e infraestrutural, utilização e recuperação de recursos naturais, adequado capital humano, gestão de informação, conhecimento e inovação. A valorização dos serviços passa por atingir valorização empresarial e económica nos mercados interno e externo, circularidade e valorização ambiental e territorial, valorização societal, transparência, responsabilização e ética, e contribuição para o desenvolvimento sustentável e a cooperação política internacional.
Mas é essencial ter presente que, tão importante como ter um bom planeamento estratégico é ter uma boa governança do mesmo, sem a qual a sua realização dificilmente terá sucesso. Importa ter bem definidos os mecanismos de governança do plano, de mobilização do setor, de monitorização, de gestão do risco e de apoio tecnológico.
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